O desafio do cuidado e as desigualdades sociais no Brasil
Desigualdades sobrepostas afetam a primeira infância e seus cuidadores no Brasil, e a inovação social pode ajudar a enfrentar esses desafios.
No Brasil, cerca de 18 milhões de crianças vivem a primeira infância. Mais da metade delas, aproximadamente 10 milhões, está em situação de vulnerabilidade social. Esse dado vem de uma pesquisa realizada em 2024 pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social, que analisou o perfil das crianças de 0 a 6 anos registradas no Cadastro Único (CadÚnico) — uma base nacional que identifica famílias de baixa renda e garante o acesso a benefícios sociais, como o Bolsa Família.
A primeira infância é uma fase essencial do desenvolvimento humano, com impactos que duram para toda a vida. É também um dos períodos em que o investimento social tem mais potencial para reduzir desigualdades e quebrar ciclos de pobreza. Apesar disso, essas crianças pequenas estão desproporcionalmente representadas entre os mais pobres: embora representem 8,9% da população brasileira, são 15,9% dos inscritos no CadÚnico. Em outras palavras, há alta concentração de pobreza monetária nessa faixa etária, as crianças pequenas estão no centro das desigualdades.
Para compreender essa realidade por completo, é preciso olhar também para quem cuida dessas crianças — o que revela um cenário ainda mais desafiador. Segundo o mesmo estudo, 77% das crianças de 0 a 6 anos no CadÚnico vivem em famílias monoparentais, e 74% dessas famílias são chefiadas por mulheres. Na população geral, esse índice é de apenas 14,7%. Trata-se de um dado que escancara a sobrecarga vivida por mães solo e, sobretudo, por mães negras.
Dessas famílias, 33,6% são lideradas por mulheres negras, sem ensino médio completo e com renda per capita inferior a R$ 218 por mês (aproximadamente 40 dólares). Essas mulheres enfrentam um cruzamento brutal de adversidades e violações de direitos: racismo, pobreza, machismo e exclusão histórica das políticas públicas. Essa interseccionalidade intensifica vulnerabilidades e limita oportunidades. A maternidade, nesse contexto, muitas vezes se inicia em cenários marcados por forte disparidade social: em 2023, 76% dos partos entre adolescentes no Brasil foram de mulheres negras ou indígenas, o que revela como essas desigualdades se manifestam de forma precoce e persistente.
Ser uma mãe negra, solo e em situação de pobreza no Brasil significa, muitas vezes, enfrentar barreiras para acessar serviços, empregos formais, estabilidade financeira e redes de apoio. É carregar sozinha a responsabilidade pelos cuidados, enquanto lida com insegurança alimentar, moradia precária e ausência de políticas que reconheçam sua centralidade no cuidado. Nada disso acontece isoladamente: esses fatores se acumulam, se reforçam e impactam o desenvolvimento das crianças que dependem delas.
Esse é apenas um dos muitos contextos desafiadores enfrentados por cuidadores de crianças pequenas no país. Quando levamos em conta as interseccionalidades que atravessam classe social, raça, etnia, gênero e território, em um país tão diverso e desigual como o Brasil, surgem outras realidades igualmente urgentes.
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de crianças de 0 a 6 anos no Brasil estão em situação de vulnerabilidade social
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das famílias vulneráveis são chefiadas por mulheres, muitas das quais são mães solteiras negras que enfrentam uma «brutal interseção de adversidades», incluindo pobreza, sexismo e racismo.
Os dados do CadÚnico revelam, por exemplo, que 12,1% das crianças e 14% dos responsáveis cadastrados pertencem a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos (GPTE), como populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, entre outras. São grupos com modos de vida próprios, práticas culturais únicas e uma profunda ligação com seus territórios — aspectos que precisam ser reconhecidos e respeitados. A invisibilidade dessas especificidades dificulta o acesso a políticas públicas adequadas e contribui para a perpetuação das desigualdades.
Diante de cenários em que desafios se sobrepõem, a inovação surge como uma grande aliada para promover o cuidado a quem cuida. E inovar aqui não significa apenas lançar mão de tecnologias, mas de iniciativas que nascem da escuta atenta, o reconhecimento de saberes locais e a construção de soluções a partir das realidades concretas. Em todo o Brasil, mulheres negras, indígenas e periféricas vêm, há anos, liderando redes de apoio, promovendo cuidado coletivo e garantindo dignidade em contextos adversos.
É por acreditar na força dessas iniciativas que a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal apoia o Good Start Challenge, um desafio global que busca identificar e impulsionar soluções inovadoras que apoiem famílias com crianças pequenas, especialmente aquelas em contextos de maior vulnerabilidade. No Brasil, buscamos dar visibilidade e escala a propostas que coloquem no centro o bem-estar de quem sustenta, com tanto esforço, as bases da sociedade: mães, pais e cuidadores.
Mais do que premiar ações inovadoras, o desafio é um convite à ação coletiva. Porque inovar, nesse contexto, é promover equidade. É reconhecer o valor de quem cuida — e garantir que ninguém cuide sozinha.